Capítulo 19 – A Jovem Desencarnada

– Sua neta não vem à mesa para as refeições? – perguntei à dona da casa, ensaiando palestra mais íntima. – Por enquanto, alimenta-se a sós – esclareceu dona Laura -, a tolinha continua nervosa, abatida. Aqui, não trazemos à mesa qualquer pessoa que
se manifeste perturbada ou desgostosa. A neurastenia e a inquietação
emitem fluidos pesados e venenosos, que se misturam automaticamente às
substâncias alimentares. Minha neta demorou-se no Umbral quinze dias, em
forte sonolência, assistida por nós. Deveria ingressar nos pavilhões
hospitalares, mas, afinal, veio submeter-se aos meus cuidados diretos.
Manifestei desejo de visitar a recém-chegada do planeta. Seria muito
interessante ouvi-la. Há quanto tempo estava sem notícias diretas da
existência comum?
A senhora Laura não se fez rogada quando lhe dei a conhecer meu
desejo.
Demandamos um quarto confortável e muito amplo. Uma jovem muito
pálida repousava em cômoda poltrona. Surpreendeu-se vivamente ao verme.
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– Este amigo, Eloísa – explicou a genitora de Lísias, indicando-me -, é
um irmão nosso que voltou da esfera física, há pouco tempo.
A moça fitou-me curiosa, embora os olhos perdidos nas fundas
olheiras traduzissem grande esforço para concentrar atenção.
Cumprimentou-me, esboçando vago sorriso, dando-me eu a conhecer, por
minha vez.
– Deve estar cansada – observei.
Antes, porém, que ela respondesse, adiantou-se a senhora Laura,
procurando subtrai-la a esforços sobreposse fatigantes:
– Eloísa tem estado inquieta, aflita. Em parte, justifica-se. A
tuberculose foi longa e deixou-lhe traços profundos; entretanto, não se pode
prescindir, a tempo algum, do otimismo e da coragem.
Vi a jovem arregalar os olhos muito negros, como a reter o pranto,
mas em vão. O tórax começou a arfar-lhe violentamente e, colando o lenço
ao rosto, não conseguia conter os soluços angustiosos.
– Tolinha! – disse a meiga senhora abraçando-a – é necessário reagir
contra isso. Estas impressões são os resultados da educação religiosa
deficiente, nada mais. Sabes que tua mãe não se demorará e que não podes
contar com a fidelidade do noivo, que, de modo algum, está preparado a te
oferecer uma sincera dedicação espiritual na Terra. Ele ainda está longe do
espírito sublime do amor iluminado. Naturalmente, desposará outra e deves
habituar-te a esta convicção. Nem seria justo exigir-lhe a vinda brusca.
Sorrindo maternalmente, a senhora Laura acrescentou:
– Admitamos que viesse, forçando a lei. Não seria mais duro o
sofrimento? Não pagarias caro a cooperação
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que houvesses desenvolvido nesse particular? Não te faltarão amizades
carinhosas, nem colaboração fraternal, para que te equilibres aqui. E se
amas, de fato, o rapaz, deves procurar harmonia para beneficiá-lo mais
tarde. Além disso, tua mãe não tarda a chegar.
Penalizou-me o pranto copioso da jovem. Procurei estabelecer novo
rumo à conversação, tentando subtrai-la à crise de lágrimas.
– Donde vem você, Eloísa? – interroguei.
A mãe de Lísias, agora calada, parecia igualmente desejosa de vê-la
desembaraçar-se.
Após longos instantes em que enxugava os olhos lacrimosos, a moça
respondeu:
– Do Rio de Janeiro.
– Mas não deve chorar assim – objetei. Você é muito feliz. Desencarnou
há poucos dias, está com os seus parentes e não conheceu tempestades na
grande viagem…
Ela pareceu reanimar-se, falando mais calma:
– Não imagina, porém, quanto tenho sofrido. Oito meses de luta com a
tuberculose, não obstante os tratamentos… a mágoa de haver transmitido a
moléstia a minha carinhosa mãe… Além disso, o que padeceu por minha
causa o pobre noivo, é inenarrável…
– Ora, ora, não diga isso – observou a senhora Laura a sorrir. Na Terra
temos sempre a ilusão de que não há dor maior que a nossa. Pura cegueira:
há milhões de criaturas afrontando situações verdadeiramente cruéis,
comparadas às nossas experiências.
– Arnaldo, porém, vovó, ficou sem consolo, desesperado. Tudo isso dá
que pensar – acentuou contrafeita.
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– E acreditas sinceramente nessa impressão? – perguntou a matrona
com inflexão de carinho. Observei teu ex-noivo, diversas vezes, no curso da
tua enfermidade. Era natural que ele se comovesse tanto, vendo-te o corpo
reduzido a frangalhos; mas não está preparado para compreender um
sentimento puro. Reconfortar-se-á muito depressa. Amor iluminado não é
para qualquer criatura humana. Conserva, portanto, o teu otimismo. Poderás
auxiliá-lo, sem dúvida, muitas vezes, mas no que concerne à união conjugal,
quando puderes excursionar às esferas do planeta, em nossa companhia, já
o encontrarás casado com outra.
Admirado por minha vez, notei a surpresa dolorosa de Eloísa. Não
sabia a convalescente como portar-se ante a serenidade e o bom senso da
avó.
– Será possível?
A genitora de Lísias esboçou um gesto extremamente carinhoso e
falou:
– Não sejas teimosa, nem tentes desmentir-me.
Vendo que a enferma parecia tomar a atitude íntima de quem deseja
provas, a senhora Laura insistiu, muito meiga:
– Não te recordas da Maria da Luz, a colega que te levava flores todos
os domingos? Pois nota: quando o médico anunciou, em caráter
confidencial, a impossibilidade de restabelecer-te o corpo físico, Arnaldo,
embora muito magoado, começou a envolvê-la em vibrações mentais
diferentes. Agora que aqui estás, não demorarão muito as resoluções novas.
Ah! que horror, vovó!
– Horror, por quê? É preciso te habituares a considerar as
necessidades alheias. Teu noivo é homem comum, não está alertado para as
belezas sublimes do amor espiritual. Não podes operai milagres nele, por
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muito que o ames. A descoberta de si mesmo é apanágio de cada um.
Arnaldo conhecerá mais tarde a beleza do teu idealismo; mas, por agora, é
preciso entregá-lo às experiências de que necessita.
– Não me conformo! – clamou a jovem, chorando – justamente Maria da
Luz, a amiga que sempre julguei fidelíssima.
A senhora Laura, todavia, sorriu e falou, cautelosa:
– Não será, porém, mais agradável confiá-lo aos cuidados de uma
criatura irmã? Maria da Luz será sempre tua amiga espiritual, ao passo que
outra mulher talvez te dificultasse, mais tarde, o acesso ao coração dele.
Eu estava eminentemente surpreendido. Eloísa prorrompera em
soluços. A bondosa senhora percebeu-me a intranqüilidade e, no propósito
talvez de orientar tanto a neta quanto a mim, esclareceu sensatamente:
– Sei a causa do teu pranto, filhinha: nasce da terra inculta do nosso
milenário egoísmo, da nossa renitente vaidade humana. Entretanto, a vovó
não te fala para ferir, mas para acordar.
Enquanto Eloísa chorava, a mãe de Lísias convidou-me novamente à
sala de estar, considerando que a doente necessitava de repouso.
Ao sentarmo-nos, falou em tom confidencial:
– Minha neta chegou profundamente fatigada. Prendeu o coração,
demasiadamente, nas teias do amor-próprio. A rigor, o lugar dela seria em
qualquer dos nossos hospitais; entretanto, o Assistente Couceiro julgou
melhor situá-la junto ao nosso carinho. Isso, aliás, é muito do meu agrado,
porque minha querida Teresa, sua mãe, está a chegar. Um pouco de
paciência e atingiremos a solução justa. Questão de tempo e serenidade.
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