Capítulo 2 – Clarêncio

“Suicida! Suicida! Criminoso! Infame!”

– Gritos assim, cercavam-me de todos os lados.

Onde os sicários de coração empedernido?

Por vezes, enxergava-os de relance, escorregadios na treva espessa e, quando meu desespero atingia o auge, atacava-os, mobilizando extremas energias.

Em vão, porém, esmurrava o ar nos paroxismos da cólera. Gargalhadas sarcásticas feriam-me os ouvidos, enquanto os vultos negros desapareciam na sombra.andré luiz, umbral,nosso lar, filme, 21

Para quem apelar? Torturava-me a fome, a sede me escaldava.

Comezinhos fenômenos da experiência material patenteavam-se-me aos olhos.

Crescera-me a barba, a roupa começava a romper-se com os esforços da resistência, na região desconhecida.

A circunstância mais dolorosa, no entanto, não é o terrível abandono a que me sentia votado, mas o assédio incessante de forças perversas que me assomavam nos caminhos ermos e obscuros. Irritavam-me, aniquilavam-me a possibilidade de concatenar ideias.

Desejava ponderar maduramente a situação, esquadrinhar razões e estabelecer novas diretrizes ao pensamento, mas aquelas vozes, aqueles lamentos misturados de acusações nominais, desnorteavam-me irremediavelmente.

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– Que buscas, infeliz! Aonde vais, suicida?

Tais objurgatórias, incessantemente repetidas, perturbavam-me o coração. Infeliz, sim; mas, suicida? – nunca! Essas increpações, a meu ver, não eram procedentes. Eu havia deixado o corpo físico a contragosto.

Recordava meu porfiado duelo com a morte.

Ainda julgava ouvir os últimos pareceres médicos, enunciados na Casa de Saúde; lembrava a assistência desvelada que tivera, os curativos dolorosos que experimentara nos dias longos que se seguiram à delicada operação dos intestinos.

Sentia, no curso dessas reminiscências, o contacto do termômetro, o pique desagradável da agulha de injeções e, por fim, a última cena que precedera o grande sono: minha esposa ainda jovem e os três filhos contemplando-me, no terror da eterna separação.

Depois… o despertar na paisagem úmida e escura e a grande caminhada que parecia sem-fim.

Por que a pecha de suicídio, quando fora compelido a abandonar a casa, a família e o doce convívio dos meus?

O homem mais forte conhecerá limites à resistência emocional. Firme e resoluto a princípio, comecei por entregar-me a longos períodos de desânimo, e, longe de prosseguir na fortaleza  moral, por ignorar o próprio fim, senti que as lágrimas longamente represadas visitavam-me com mais freqüência, extravasando do coração.

A quem recorrer? Por maior que fosse a cultura intelectual trazida do mundo, não poderia alterar, agora, a realidade da vida.

Meus conhecimentos, ante o infinito, semelhavam-se a pequenas bolhas de sabão levadas ao vento impetuoso que transforma as paisagens.

Eu era alguma coisa que o tufão da verdade carreava para muito longe.

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Entretanto, a situação não modificava a outra realidade do meu ser essencial.

Perguntando a mim mesmo se não enlouquecera, encontrava a consciência vigilante, esclarecendo-me que continuava a ser eu mesmo, com o sentimento e a cultura colhidos na experiência material.

Persistiam as necessidades fisiológicas, sem modificação.

Castigava-me a fome todas as fibras, e, nada obstante, o abatimento progressivo não me fazia cair definitivamente em absoluta exaustão.

De quando em quando, deparavam-se-me verduras que me pareciam agrestes, em torno de humildes filetes d’água a que me atirava sequioso. Devorava as folhas desconhecidas, colava os lábios à nascente turva, enquanto mo permitiam as forças irresistíveis, a impelirem-me para a frente.

Muita vez suguei a lama da estrada, recordei o antigo pão de cada dia, vertendo copioso pranto.

Não raro, era imprescindível ocultar-me das enormes manadas de seres animalescos, que passavam em bando, quais feras insaciáveis. Eram quadros de estarrecer! acentuava-se o desalento.

Foi quando comecei a recordar que deveria existir um Autor da Vida, fosse onde fosse.

Essa ideia confortou-me.

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Eu, que detestara as religiões no mundo, experimentava agora a necessidade de conforto místico.

Médico extremamente arraigado ao negativismo da minha geração, impunha-se-me atitude renovadora.

Tornava-se imprescindível confessar a falência do amor próprio, a que me consagrara orgulhoso. E, quando as energias me faltaram de todo, quando me senti absolutamente colado ao lodo da Terra, sem forças para reerguer-me, pedi ao Supremo Autor da Natureza me estendesse mãos paternais, em tão amargurosa emergência.

Quanto tempo durou a rogativa? Quantas horas consagrei à súplica, de mãos-postas, imitando a criança aflita?

Apenas sei que a chuva das lágrimas me lavou o rosto; que todos os meus sentimentos se concentraram na prece dolorosa.


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Estaria, então, completamente esquecido? Não era, igualmente,  filho de Deus, embora não cogitasse de conhecer-lhe a atividade sublime quando engolfado nas vaidades da experiência humana? Por que não me perdoaria o Eterno Pai, quando providenciava ninho às aves inconscientes e protegia, bondoso, a flor tenra dos campos agrestes?

Ah! é preciso haver sofrido muito, para entender todas as misteriosas belezas da oração; é necessário haver conhecido o remorso, a humilhação, a extrema desventura, para tomar com eficácia o sublime elixir de esperança.

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Foi nesse instante que as neblinas espessas se dissiparam e alguém surgiu, emissário dos Céus. Um velhinho simpático me sorriu paternalmente. Inclinou–se, fixou nos meus os grandes olhos lúcidos, e falou:

– Coragem, meu filho! O Senhor não te desampara.

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Amargurado pranto banhava-me a alma toda. Emocionado, quis traduzir meu júbilo, comentar a consolação que me chegava, mas, reunindo todas as forças que me restavam, pude apenas inquirir:

– Quem sois, generoso emissário de Deus?

O inesperado benfeitor sorriu bondoso e respondeu:

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– Chama-me Clarêncio, sou apenas teu irmão.

Filme 'Nosso Lar'

E, percebendo o meu esgotamento, acrescentou:

– Agora, permanece calmo e silencioso. É preciso descansar para reaver energias.

Em seguida, chamou dois companheiros que guardavam atitude de servos desvelados e ordenou:

– Prestemos ao nosso amigo os socorros de emergência.

Alvo lençol foi estendido ali mesmo, à guisa de maca improvisada, aprestando-se ambos os cooperadores a transportarem-me, generosamente.
Quando me alçavam, cuidadosos, Clarêncio meditou um instante e esclareceu, como quem recorda inadiável obrigação:

– Vamos sem demora. Preciso atingir “Nosso Lar” com a presteza possível.

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GALERIA de FOTOS do CAPÍTULO

Todas as fotos usadas neste capítulo, são capturas de tela feitas a partir do filme ‘Nosso Lar’


 

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